O primeiro ministro deu conta de que os protestos contra a reestruturação da rede de urgências estavam a alastrar como fogo na savana e retirou das manifestações já realizadas e das outras que haviam de surgir nas próximas semanas a única conclusão possível: o processo em curso tinha de ser despido da carga afectiva e bairrista que o marca para regressar à esfera da política. Feita a constatação, restava a conclusão óbvia: como a política é a arte do possível, Sócrates tinha de chamar o processo a si e entrar na via da negociação. Ou, numa acepção mais guterrista, do diálogo. Com esta decisão, o Governo quer esvaziar pelo protocolo e pela táctica do rebuçado os focos de incêndio que começavam a grassar não apenas nos concelhos que seriam alvo de cortes nos serviços de urgência, mas também nas próprias bases do PS. Se até agora a truculência e a estratégia de remeter para os autarcas o odioso das manifestações foram a resposta que, via ministro Correia de Campos, o Governo deu, o que se espera nos próximos episódios é conversa mole, algumas promessas e manobras de envolvimento desses mesmos autarcas.
Uma operação de risco, portanto. Porque premeia os protestos e legitima-os como a fórmula eficaz de negociação política. Mas também porque deixa no ar a vaga sensação de que a agenda de reformas de José Sócrates está dependente da pressão popular.
Deve-se, no entanto, situar melhor a questão antes de se tirarem conclusões de fundo. A começar pela própria natureza da reforma em causa, que não cabe nas definições dos ataques as interesses instalados, aos privilégios de uma classe profissional ou ao regime financeiro de uma região autónoma.
Por consequência de pulsões bairristas ou por resultado de uma leitura exacta do que está em causa, a verdade é que qualquer alteração na actual configuração das urgências mobiliza a fúria e o desencanto das populações afectadas e desfaz distinções entre partidos. Ao contrário das críticas contra o encerramento de maternidades, a alteração do quando das urgências movimenta todos, rigorosamente todos, os utentes do sistema de saúde dos concelhos em causa.
Depois, por muito que o relatório seja objectivo, por muito que haja urgências que não façam sentido no quadro de carência financeira ou de pessoal especializado com que se debate o sistema, por muito que na contabilidade final haja mais benefícios do que custos, as pessoas que deixam de ter um serviço de urgência ao pé de casa e têm de o procurar a 20,30 ou 40 quilómetros de distância têm razões para protestar. Por puro individualismo, por serem incapazes de perceber a necessidade de mudar, por se sentirem diminuídas pela inveja face aos vizinhos, talvez. Mas é impossível apelar a famílias com bebés ou com idosos que aceitem sem discussão a privação a que serão submetidos caso avance a reestruturação das urgências.
Face a este quadro, entre a imposição de medidas inaceitáveis para milhares de cidadãos e seu convencimento através do diálogo e da adopção de medidas capazes de mitiar os problemas, o Governo optou pela segunda via. Se isso significar uma cedência pura e simples aos protestos, o caminho revelar-se-á ínvio e prejudicial para os interesses gerais deum país que necessita com urgência de reformas. Se, pelo contrário, for a prova de que o Governo está disposto a prescindir do acessório, mantendo, por exemplo, regimes transitórios ou serviços reduzidos e adequados às necessidades elementares dos utentes, para garantir o essencial, então a opção de José Sócrates terá sido a mais correcta.
Manuel Carvalho, JP 24.02.07
Uma operação de risco, portanto. Porque premeia os protestos e legitima-os como a fórmula eficaz de negociação política. Mas também porque deixa no ar a vaga sensação de que a agenda de reformas de José Sócrates está dependente da pressão popular.
Deve-se, no entanto, situar melhor a questão antes de se tirarem conclusões de fundo. A começar pela própria natureza da reforma em causa, que não cabe nas definições dos ataques as interesses instalados, aos privilégios de uma classe profissional ou ao regime financeiro de uma região autónoma.
Por consequência de pulsões bairristas ou por resultado de uma leitura exacta do que está em causa, a verdade é que qualquer alteração na actual configuração das urgências mobiliza a fúria e o desencanto das populações afectadas e desfaz distinções entre partidos. Ao contrário das críticas contra o encerramento de maternidades, a alteração do quando das urgências movimenta todos, rigorosamente todos, os utentes do sistema de saúde dos concelhos em causa.
Depois, por muito que o relatório seja objectivo, por muito que haja urgências que não façam sentido no quadro de carência financeira ou de pessoal especializado com que se debate o sistema, por muito que na contabilidade final haja mais benefícios do que custos, as pessoas que deixam de ter um serviço de urgência ao pé de casa e têm de o procurar a 20,30 ou 40 quilómetros de distância têm razões para protestar. Por puro individualismo, por serem incapazes de perceber a necessidade de mudar, por se sentirem diminuídas pela inveja face aos vizinhos, talvez. Mas é impossível apelar a famílias com bebés ou com idosos que aceitem sem discussão a privação a que serão submetidos caso avance a reestruturação das urgências.
Face a este quadro, entre a imposição de medidas inaceitáveis para milhares de cidadãos e seu convencimento através do diálogo e da adopção de medidas capazes de mitiar os problemas, o Governo optou pela segunda via. Se isso significar uma cedência pura e simples aos protestos, o caminho revelar-se-á ínvio e prejudicial para os interesses gerais deum país que necessita com urgência de reformas. Se, pelo contrário, for a prova de que o Governo está disposto a prescindir do acessório, mantendo, por exemplo, regimes transitórios ou serviços reduzidos e adequados às necessidades elementares dos utentes, para garantir o essencial, então a opção de José Sócrates terá sido a mais correcta.
Manuel Carvalho, JP 24.02.07